Factos: Pelas nossas 9 horas da noite de 18 de fevereiro de 2021, o mundo assistiu fascinado e com indisfarçável comoção ao beijo high-tech do robô Perseverance (nome celestialmente poético…) com a superfície de Marte. Horas depois ouviríamos, incrédulos e em direto, os sons (ventos nas dunas cósmicas?) captados pelos seus movimentos nas paisagens quase ficcionais que o protótipo ia calcorreando.
Mais factos: poucos minutos depois, alguns nossos colegas texanos, gastrenterologistas de Houston (extraordinária e impante metrópole de 2,5 milhões de habitantes, garbosa do seu Space Center, no mais orgulhoso Estado norte-americano), confidenciavam-me, também em direto, como não conseguiam tomar banho há 2 dias, nem aquecer-se adequadamente em casa, pelo colapso da rede energética que deixou 7 milhões de almas sem aquecimento nem água! Dos subúrbios da capital, Austin, vinha o aviso: “water should only be used to sustain life at this point”!
A ironia provocadora destes 2 factos chocantemente simultâneos remete-nos para a angustiada perceção da concomitância de realidades antípodas, geradas pela mesma entidade, neste caso o mundo tecnológico norte-americano, tão capaz de tocar em planetas como de não precaver e proteger os homens que os tocam.
Significativamente, acontece connosco uma circunstância semelhante em relação a alguns cancros digestivos, por exemplo o cancro colorretal (CCR): temos os recursos, as competências, a sensibilidade e vontade dos profissionais, mas…falta a organização adequada para agir. Quase tudo a montante, muito pouco a jusante. Os números, factos incontornáveis, estão aí a turvar o horizonte, e é notório o impacto que a pandemia já teve e poderá ter, durante alguns anos, em toda a cadeia de evicção (prevenção), diagnóstico precoce e tratamento desta situação oncológica.
Na Europa, imediatamente antes da pandemia, diagnosticavam-se 375 mil casos novos/ano de CCR, e por sua causa, morriam por ano 170 mil homens e mulheres. Nos Estados Unidos serão diagnosticados 150 mil casos este ano e haverá como sua consequência 53 mil mortes. A organização United European Gastroenterology foi apelando à implementação de programas de rastreio organizado para abranger toda a população da União Europeia.
É preciso, no entanto tornar claro que, um rastreio eficaz para reduzir a mortalidade, é o que resulta em efetiva prevenção, isto é, que resulte numa diminuição da mortalidade por essa patologia. É justamente nesse ponto que a colonoscopia se posicionou, há anos, com características únicas e exclusivas: num gesto só, numa mesma colonoscopia, preventiva, pode detetar-se e tratar-se (através da sua remoção) as lesões chamadas precursoras – pré-malignas, se deixadas ao destino da sua história e evolução natural – assim concorrendo para a real evicção do CCR.
Este assunto já mobilizou Papas e Presidentes dos Estados Unidos. Bill Clinton, por exemplo, criou em 2000 o National Colorectal Cancer Awareness Month, isto é, consagrou todos os meses de março desde então, à consciencialização publica deste tema. Em anos consecutivos, foi-se exponenciando a qualidade e a segurança das colonoscopias para níveis excecionais, em todos os países com sistemas de saúde certificados, tal como em Portugal.
Entre nós, onde surgem mais de 10 mil casos novos caso/ano e morrem por sua causa 11 portugueses por dia, todos os dias, a realização de colonoscopias, em 2020, diminuiu a uma escala impensável há um ano: quando se analisa o número de preparações intestinais (o produto que prepara o intestino para poder ser convenientemente explorado) disponibilizado durante o ano transato, a redução de 150 mil preparados (correspondente a quebra de 30% do seu mercado anual), aponta para um importantíssimo decréscimo do numero total de colonoscopias (as tais 150 mil) numa fase em que o expectável era o aumento progressivo da necessidade da sua utilização, pela maior literacia do público e dos profissionais relativamente aos méritos e eficácia da colonoscopia como método de eleição para a prevenção do CCR.
Se presumirmos que só metade destes 150 mil exames é que seria puramente para rastreio endoscópico – a outra metade seria solicitada com propósito de diagnóstico de situações clinicas que indicam a sua realização, como por exemplo na anemia ou alterações digestivas – em 75 mil exames endoscópicos de rastreio seriam encontrados, como habitualmente, 25 mil condições (30% dos 75 mil), que podem evoluir gravemente: as tais lesões precursoras que por ausência da colonoscopia não foram detetadas nem adequadamente tratadas nesse mesmo gesto. O que significa que o sistema de saúde tem, no início deste ano, que tentar resolver – e em cima do esforço anual que já vinha a ser realizado – mais de 25 mil situações com que as diversas unidades de saúde não puderam lidar.
No mês consagrado em muitas áreas do mundo ao conhecimento sobre o CCR, a reflexão imperiosa impõe-se, na tentativa de rapidamente se estabelecer um plano de soluções para normalizar não só o que já deveria estar a ser usado há muito (como em países europeus com bons e sólidos sistemas de saúde); um plano que promova ativa e organizadamente a realização de procedimentos endoscópicos que num momento apenas identifica e remove o que poderia evoluir para cancro.
Porque se compreende que “a verdadeira missão do SNS é a prevenção” (Sofia Leal, Expresso, 14/02/21), porque os profissionais têm sublinhado que a integração de cuidados de saúde favorece a tal celeridade e efetividade de respostas às necessidades das populações, o nosso apelo é precisamente à visão inclusiva dessa estratégia e que alinhe todas as estruturas potencialmente protagonistas, públicas e privadas, para a dita resposta concertada de prevenção. Em Portugal há capacidade instalada, conjugadas as múltiplas frentes assistenciais, para a realização da colonoscopia com o propósito de rastreio e prevenção do CCR.
Os nossos profissionais gastrenterologistas, os especialistas que cuidam da Saúde Digestiva, têm o reconhecimento e a credibilização com que a congénere científica internacional lhes tem distinguido. Nos Estados Unidos por exemplo, a compreensão da urgência deste assunto relacionado com o CCR é de tal forma, que se promovem anualmente concursos de criatividade entre esta comunidade médica, para exponenciar a consciencialização publica e administrativa sobre a importância de colonoscopia.
A Covid-19 não pode mais suspender ou abafar a atividade assistencial, mandatória e básica, para toda a restante população. Tal como a saúde não é confinável, também a consciência cívica e a ética profissional não o são; assim, por se entender que a biologia não se adia, pugnamos para que o incessante esforço de todos também deva ser orientado para resgatar a patologia não Covid-19 do qual o CCR é um dramático exemplo. Dispõe Portugal dos mestres para essas artes e ofícios.
Professor Guilherme Macedo
Presidente da Comissão do Cancro Colorrectal da Sociedade Portuguesa de Gastrenterologia
Publicado in Expresso