It is more important to know what sort of person has a disease than to know what sort of disease a person has.”
Hippocrates
Sabemos que os eventos de vida negativos assim como o stress e a ansiedade podem despoletar ou exacerbar determinadas doenças em nós.
A pandemia pelo COVID-19 é provavelmente o evento epidemiológico mais marcante na história moderna. Os estados de emergência sucessivamente declarados associados a fortes medidas restritivas, tomadas um pouco por todo o Mundo, alteraram todo o nosso quotidiano. Desde o trabalho à socialização, às nossas mais simples rotinas domésticas, os conceitos-chave que nortearam a nossa vivência desde então foram higienização e distância física.
E como afectou isso a nossa Saúde? Diversos estudos apontam para um aumento da prevalência da ansiedade e depressão entre a população geral assim como para um aumento dos níveis de solidão, que nem a era digital e as redes sociais conseguem (de todo) colmatar.
Neste contexto, a Saúde Digestiva sofreu um forte abalo nomeadamente as denominadas patologias do eixo cérebro-intestino, de origem multifactorial mas com uma forte componente relacionada com o stress. As patologias do eixo cérebro-intestino mais comuns são a dispepsia funcional e a síndrome do intestino irritável. O distanciamento social e o teletrabalho a que a pandemia COVID-19 nos conduziu, agravaram os sintomas digestivos e a qualidade de vida destes nossos doentes. Isso foi demonstrado em alguns estudos e é também evidente na maior procura da consulta de Gastrenterologia pelos sintomas que caracterizam estas doenças – dor de estômago e enfartamento, desconforto abdominal e alteração do trânsito intestinal. Também a doença de refluxo gastro-esofágico e a patologia hemorroidária motivaram maior procura de consulta de Gastrenterologia provavelmente justificados pelo sedentarismo patente nesta fase pandémica. Há ainda impactos previsíveis na Saúde Digestiva que só serão evidentes a médio prazo. É o caso do agravamento da doença hepática metabólica nos doentes que com o confinamento e o teletrabalho sentem enormes dificuldades no controlo dos factores de risco cardio-vascular (como o excesso de peso, controlo tensional e glicémico). Há também o caso do rastreio do cancro colorectal – perder a rotina do rastreio poderá ser uma factura que chegará mais tarde.
Mas mesmo a pandemia sendo a crise partilhada mais significativa que vivemos nas últimas décadas, a pandemia não é a única responsável pelo agravamento da Saúde Digestiva que observamos. A pandemia veio acelerar algumas tendências que já existiam – sedentarismo, ansiedade, depressão, solidão têm vindo a galopar na nossa sociedade a acompanhar o ritmo da sobre-estimulação contínua e busca pela perfeição e aquisição.
Como em outros momentos históricos, as crises devem ser usadas como oportunidades não apenas de reconstrução mas de novas construções. Reestabelecer laços, alterar rotinas quotidianas, ajustar empatias, criar proximidade, fazer sabáticas digitais amiúde, praticar exercício físico, higienizar o sono, adoptar dietas saudáveis e com menor impacto ambiental, cuidar dos outros, comprar livros – tudo está nas nossas mãos. Procurar percursos alternativos de felicidade e saúde poderá e deverá ser o nosso objectivo futuro comum.
Drª Ana Célia Caetano,
Presidente do Núcleo de Neurogastrenterologia e Motilidade Digestiva da SPG